segunda-feira, 21 de julho de 2008

Explosão social latente?

Jornal de Notícias

Explosão social latente?

Bairros Sociais serão apenas alfobres de gente feia, porca e má ou territórios esquecidos pelo Estado que cedeu ao betão e ao experimentalismo social?


"Estamos a criar futuras explosões sociais", atalha José Gabriel Pereira Bastos, antropólogo e coordenador do Centro de Estudos de Migrações e Minorias Étnicas da Universidade Nova de Lisboa. Diz que a questão remonta aos anos 50 e 60, aquando da migração para a cidade dos "brancos rurais".
Com eles vieram os ciganos, os africanos e um processo de urbanização galopante. Só a cintura à volta de Lisboa - Almada, Barreiro, Seixal, Alcochete, Moita - contabiliza hoje 2,5 milhões de pessoas e estima-se que, daqui a dez anos, seja o dobro. Esta imensa bolha cresce também à volta do Porto.
Voltando atrás, estes migrantes à procura de uma vida na cidade com melhores condições apenas deram de caras com políticas pós-modernas que previam a automação, a dispensa da mão-de-obra básica. Este grupo de gente que podia ser substituído, em larga escala, por máquinas e computadores foi "re-concentrado em bairros de construção social, que deram muito dinheiro à construção civil e afins mas que eram de muito má qualidade, além de estarem plantados no meio de terrenos baldios sem quaisquer equipamentos à volta".
Estas pessoas passaram a ser "os refugiados urbanos" ou, por assim dizer, "uma chatice para os Governos", caracteriza sumariamente Pereira Bastos.
Aisto acresce o facto de os diferentes grupos que compõem esta imensa minoria competirem entre si. "Os brancos rurais, que produzem uma camada de suburbanos pouco escolarizados, são racistas", resume. Dito de outro modo, cada grupo tem uma forma muito própria - por razões também culturais - de estar na vida. Pois se são todos ou quase todos "pobres", se vivem concentrados num espaço exíguo e se, "naturalmente, não escapam à necessidade humana de serem superiores ao outro de alguma forma", então, estão reunidas as condições para a disputa. "Se não sou mais rico, então sou mais moral, mas em alguma coisa tenho de ter mais razão", traduz Pereira Bastos. O antropólogo não duvida de que a Quinta da Fonte é um conflito inter-étnico, "como outros que estão por vir, que assentam na necessidade de dominar o território, de exercer superioridade".
Luís Fernandes, etnógrafo urbano das questões da marginalidade e do desvio, contraria a perspectiva. Para o etnógrafo, a maioria dos nossos bairros sociais não são enclaves, apenas habitação de cariz popular com classes sociais menos favorecidas onde a violência não se naturalizou.
"Alarmamo-nos com pouco", defende. E o que sucedeu na Quinta da Fonte, argumenta, "não é uma questão étnica porque o que aconteceu entre ciganos e africanos poderia ter acontecido entre pessoas do mesmo grupo, entre outras pessoas quaisquer".
Numa coisa Luís Fernandes concorda com Pereira Bastos: "As razões da tensão residem fora do bairro". Basicamente, em contextos de fragilidade imensa onde a frustração é uma constante, estão reunidas as condições para se potenciarem e esgrimirem as diferenças.
Resumidamente, se até aos anos 50, enquanto a sociedade industrial funcionou, o bairro também funcionou - pois havia uma transição natural entre escola e o mundo operário e, consequentemente, uma convivência harmónica entre o mercado de trabalho e o bairro - a partir de então, com as constantes migrações em massa e, mais tarde, com a crise internacional do petróleo em 1973 (com fenómenos económicos conducentes à desindustrialização), o bairro social deixa de funcionar.
"O mundo industrial decide baixar o custo de produção pelo lado da mão-de-obra, deslocalizando, isto é, produzindo desemprego", resume Luís Fernandes. Por outro lado, os processos fabris começam a ser automáticos e "a integrarem em larga escala a máquina. O trabalho que era feito por 100 homens passa a ser feito com muitos menos". Não bastasse isto e o sector terciário - no qual se inclui o Turismo, por exemplo - passa a ser vital para a economia. "O mundo operário ficou afastado. As franjas menos escolarizadas ficaram condenadas aos empregos precários e flutuantes", resume.
Estes três factores alteram por completo a face das cidades. As populações operárias que viviam no bairro social já não são precisas, são os supra-numerários. O bairro social transformou-se num "território em ruptura com a sociedade dominante". Um território onde reina o desemprego.
Só no bairro da Quinta da Fonte, 90% da população vive com o Rendimento Social de Inserção. No entanto, quem viu os noticiários nacionais também reteve a célebre frase de um senhor que reclamava ter sido roubado, até no seu televisor de plasma… "Quem não pode ser útil na economia formal, recorre à economia informal", contextualiza Luís Fernandes.
No melhor dos casos, esta economia informal pode traduzir-se nas empregadas domésticas sem contrato ou descontos, que podem ser despedidas a qualquer momento sem poderem fazer valer os seus direitos laborais. Ou no canalizador que faz uns trabalhos "por fora", cobra o que quer e não paga impostos. No pior dos cenários, esta "informalidade" traduz a prostituição, o tráfico de droga ou de armas. O lado pior da equação é cada vez mais visível. O que tem feito o Estado? "O Estado tem ficado de fora, tem mantido um papel demissionário", avança o sociólogo Virgílio Borges.
OEstado "tem permitido que cresçam os muros à volta destes bairros", reitera aquele sociólogo. Dentro desses muros - onde "a frustração, o desemprego e a indignação reinam", complementa Pereira Bastos - a visão do feio é uma constante. São blocos de cimento pintados a manchas pretas de humidade, cujo chão é muitas vezes decorado a pratas, seringas, limões e lixo doméstico para a fome de cães vadios e doentes.
"Quando foram feitos os primeiros bairros sociais, como a gente hoje os entende, foi autorizado o não cumprimento do Regulamento Geral das Edificações Urbanas. Esses são a esmagadora maioria dos bairros que ainda hoje temos", recorda o arquitecto Manuel Correia Fernandes. Resumidamente, são construções "com paredes que, em muitos casos, têm 10 centímetros de espessura, com tijolo de 5 centímetros, que são apenas pequenas membranas. Tudo muito precário, reduzido ao essencial para poupar nas canalizações", pormenoriza. "São casas sem qualquer conforto ou privacidade", admite.
Correia Fernandes recorda que a concentração destas pessoas foi feita com um modelo arquitectónico que falhou. "É o modelo da Carta de Atenas, onde cada zona era mono-funcional, isto é, havia uma área só para viver, outra só para trabalhar, outra só para o lazer. Basicamente, deu origem a operações massivas de acantonamento de pessoas", argumenta. Entretanto, ao contrário do resto da sociedade que foi adoptando um modelo plurifuncional, os bairros sociais "continuaram isolados, sem muitos equipamentos à volta.
"Se temos uma urbanização sem vias de comunicação decentes que façam a ligação ao resto da cidade; se não tem equipamentos como uma creche, um centro de dia, uma farmácia ou uma associação recreativa; e se lá colocamos grupos muito distintos e, ainda por cima, carenciados, estamos a potenciar a violência", conclui Correia Fernandes.
O antropólogo Pereira Bastos concorda e corrobora a ideia de que as cidades não podem estar à mercê de delírios urbanísticos. "A ideia do bairro social é tenebrosa, são uma espécie de campos de concentração de rejeitados sociais". O que pode então o Estado fazer? Que políticas se devem adoptar?
Portugal "é sucessivamente governado ora pelo centro esquerda, ora pelo centro direita. Estas populações vivem entaladas entre políticas de segurança social - como a do rendimento mínimo - e políticas securitárias que lamentam o dinheiro gasto com elas", afirma Luís Fernandes. Sendo este "um problema de inserção através do trabalho, não chega dar-lhes casa ", defende Virgílio Borges. "E também não basta darem-lhes sopa, que é como quem diz o rendimento mínimo, porque isso não resolve nada", complementa Pereira Bastos.

Urge, concordam os especialistas, um conjunto de políticas "pró-activas" que olhem para as gerações mais novas, porque este "é um problema que passa de pais para filhos", alerta Luís Fernandes. Resumidamente, "políticas de escolarização e progressiva readaptação destas populações", apontaVirgílio Borges. "Por que não criarem-se espaços de estudo fora da escola para os mais novos, por exemplo? Se não se gastar dinheiro com a infância, depois é tarde de mais", pressagia o sociólogo.

Por outro lado, seria importante que estas pessoas não estivessem todas concentradas no mesmo sítio, longe da sociedade dominante. "Em Espanha, por exemplo, não se fazem mais bairros sociais. O Estado compra casas devolutas, arranja-as e aluga-as a estas pessoas, misturando-as na sociedade, integrando-as", exemplifica Pereira Bastos.

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